Nos recantos ensolarados e nas brisas salgadas das ilhas cabo-verdianas, um gênero musical nasceu, carregando consigo a alma, as histórias e os anseios de um povo resiliente. A morna, esse lamento melódico que embala corações e tece memórias, há muito tem sido objeto de debate quanto à sua origem. Duas teorias principais competem pelo título de berço desse gênero tão amado: a Ilha Brava, terra do renomado poeta Eugénio Tavares, e a de ilha Boa Vista, cujas areias e ventos parecem ter inspirado o espírito da morna.
A tese de que a morna floresceu a partir das líricas de Eugénio Tavares, com suas palavras habilmente trançadas e carregadas de sentimentos profundos, é sedutora por sua conexão direta com a poesia e a riqueza lírica que permeia a cultura cabo-verdiana. No entanto, um simples passo além desse ponto de vista revela um tecido mais complexo, que remete à vida e à experiência do povo, às suas interações e à fusão das influências culturais.
Por outro lado, os ventos quentes e as noites estreladas da ilha de Boa Vista oferecem uma narrativa igualmente cativante. A letra de "Maria Barba Canta Mais Uma Morna" ressoa com uma nota de autenticidade e uma pitada de nostalgia que poderiam muito bem ser os ingredientes iniciais desse gênero musical. Maria Barba, uma servente na casa do governador português Senhor Tenente Serra, emerge como uma possível pioneira, lançando as sementes da morna nos corações e mentes daqueles que cruzavam seu caminho.
É intrigante considerar que enquanto Maria Barba entoava suas canções, Cesária Évora ainda não havia entrado nos palcos do mundo. Se quer sonhava nascer. A nossa estimada "diva dos pés descalços" só mais tarde levantaria voo com suas interpretações arrebatadoras, levando a morna para audiências globais e incorporando-a ao cenário internacional.
No entanto, há uma terceira abordagem, uma teoria que lança a morna nas brumas da história, bem antes das Ilhas Cabo Verde se tornarem o berço da sua expressão mais reconhecida. Essa teoria especula que a palavra "morna" descende da sua origem inglesa, "Mourn". Durante o comércio de escravos da rota triangular entre a Europa, a África e a América, os cativos africanos choravam e gemiam nos porões dos navios enquanto cruzavam os mares em direção a destinos desconhecidos. Enquanto as famílias desses escravos ficavam em terra, elas também compartilhavam do luto, do "Mourning". Essa experiência de dor e separação poderia ter semeado as sementes da Morna, uma melodia que expressa a saudade e o lamento profundo, uma herança musical que transcende séculos e continentes.
A verdade, como muitas vezes acontece com a música e a história, pode residir em um encontro entre destinos, em um diálogo entre poesia e experiência vivida, ou mesmo em raízes mais profundas, forjadas nas profundezas da diáspora africana. Talvez seja menos importante determinar um ponto de origem exato e mais significativo apreciar a morna como uma sinfonia de almas cabo-verdianas, uma expressão de suas lutas, amores e saudades, que pode ter tido influências globais desde tempos imemoriais.
Enquanto os ventos continuam a dançar sobre as ilhas de Cabo Verde e as notas melancólicas da morna continuam a ecoar, é a própria jornada desse gênero musical, suas transformações e suas raízes profundas que nos conectam a uma história rica e etérea, moldada pelo tempo e pelas vozes que a entoam. A morna é o eco das ilhas, o sussurro das memórias e, possivelmente, um lamento ancestral que ecoa através dos séculos e dos oceanos, uma melodia que transcende fronteiras e nos convida a celebrar a diversidade das suas origens e interpretações.
EUA, Setembro 2023
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* Escritor e poeta